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Cenário de fome

Homens dividem o café da manhã feito de mingau ralo e café instantâneo no Senegal - Rebecca Blackwell/AP
Homens dividem o café da manhã feito de mingau ralo e café instantâneo no Senegal Imagem: Rebecca Blackwell/AP
Lucila Cano

24/02/2017 04h00

O assunto não é dos mais animadores em época de Carnaval, mas não há como ignorar as sucessivas crises que abatem o continente africano. As mais cruéis resultam da miséria, a causa primeira da fome e da disseminação de doenças.

Há um ano, em março de 2016, a FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura) denunciava a escassez de alimentos, a desnutrição infantil e as consequências danosas de um cenário de fome no Sudão do Sul.

A jovem república africana proclamou sua independência em julho de 2011. Mas, o acesso ao grupo de países-membros da ONU e a autonomia recém-declarada não livraram o seu povo do estado de guerra permanente. Os conflitos atingem milhares de pessoas e provocam o êxodo de sobreviventes para países vizinhos. Os que permanecem na terra são condenados à miséria e à degradação humana.

Assim como outros países que se sensibilizaram pela tragédia do Sudão do Sul, o Brasil destinou R$ 1,2 milhão ao Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas em dezembro passado. A doação previa colaborar com a assistência a refugiados e populações em situação de risco no Sudão do Sul, mas também na Argélia e no Haiti.

Infelizmente, tantas são as mazelas que se abatem sobre esses e outros povos que, de novo, os organismos de cooperação humanitária pedem ajuda. Faltam recursos e, desta vez, o apelo do papa Francisco reforça a urgência de ações.

Situação agravada

Na segunda-feira, 20 de fevereiro, a ONU divulgou alguns números da crise no Sudão do Sul: 250 mil crianças estão gravemente desnutridas, mais de 100 mil pessoas passam fome e cerca de 1 milhão está à beira da insegurança alimentar.

A situação se agrava à medida que a guerra civil se intensifica. A exemplo do que ocorre na Síria e em outros países, o Sudão do Sul é mais uma porta de saída de refugiados. Segundo a Acnur (Agência da ONU para Refugiados), mais de 1,5 milhão de pessoas deixaram o país desde dezembro de 2013. A rota de fuga leva a maioria para Uganda.

Etiópia, Sudão, Quênia, República Democrática do Congo e República Centro-Africana também recebem os refugiados do Sudão do Sul, embora em menor número. O acolhimento dos vizinhos torna-se fator de equilíbrio para a região, mas a ajuda humanitária é imprescindível. Além do caos decorrente da violência, a fome persiste.

Como se comportarão os países que ora se voltam para dentro de suas fronteiras? Quem sairá em auxílio do Sudão do Sul e de uma população de famélicos?

Ironicamente, como já ocorreu em outras oportunidades, a notícia da grave crise que penaliza o país africano é divulgada simultaneamente àquela que trata do aumento da obesidade no Brasil, principalmente entre os jovens.

Não se engane quem vê na obesidade os efeitos da fartura à mesa. Afora os maus hábitos alimentares presentes em qualquer classe socioeconômica --nunca é demais lembrar que a obesidade também está associada à condição de baixa renda. Os brasileiros que perderam seus empregos, ou foram vítimas de salários achatados pela crise econômica que se instalou no país, sabem que um sanduíche qualquer mata a fome e custa menos que bifinhos sem gordura. Nada contra os carboidratos, mas toda vez que o bolso magro se rende a eles, a obesidade avança.

Um novo mundo

Vivemos um período de perplexidade. Enquanto uma parte do mundo alardeia a defesa de fronteiras demarcadas no passado, a realidade expõe a força constrangedora de exércitos formados por homens, mulheres e crianças totalmente desprovidos de armas. Por mais que sejam espezinhados, eles marcham em busca da vida, a despeito de a morte interromper o caminho de muitos.

A grandiosa movimentação de pessoas em diferentes partes do planeta define uma nova ordem social. Ignorá-la só vai acelerar o processo de perdas irreversível ao qual todos estão sujeitos, sejam protagonistas, sejam espectadores das crises.

* Homenagem a Engel Paschoal (7/11/1945 a 31/3/2010), jornalista e escritor, criador desta coluna.