"Fiquei sem os dentes", diz idosa órfã de serviço social da Gama Filho
Leda Ramos, 72, queria começar o ano de 2014 com o sorriso no rosto. Porém, a prótese encomendada a um laboratório conveniado à UGF (Universidade Gama Filho) --onde a idosa, que não possui dentes, foi atendida gratuitamente na Clínica Odontológica do campus Piedade, na zona norte do Rio de Janeiro-- tornou-se um pesadelo após o descredenciamento da instituição, anunciada no mês passado pelo MEC (Ministério da Educação).
Além de ficar sem a prótese, que deveria ter sido entregue em dezembro, ela corre o risco de não receber de volta os R$ 400 investidos na compra do material. "Infelizmente, entrei de 'gaiato'. Fiquei sem os dentes e sem dinheiro", disse.
"Era para eu estar com a prótese desde o Natal. Mas aí a faculdade entrou em greve e depois foi descredenciada, e eu fiquei sem saber o que iria acontecer. Não me falaram nada. (...) Ainda continuo nessa angústia, mas eu vou até o fim. Ou eles me dão os dentes ou me dão o dinheiro", completou Leda.
IMPACTO SOCIAL
A exemplo da clínica de odontologia, a Gama Filho oferecia serviços sociais como o CIS (Centro Integrado de Saúde) --que atendia pacientes em geral, exceto casos de emergência--, a Cenut (Clínica Escola de Nutrição), a Clínica Escola de Fisioterapia, o SPA (Serviço de Psicologia Aplicada), entre outros. Eram beneficiadas não só pessoas pobres, que não teriam como pagar por um serviço particular, mas também funcionários e parentes de funcionários. Com o descredenciamento da UGF, todos os serviços deixaram de existir
A estudante de odontologia que fez o atendimento da idosa, Renata Lasmar, 31, afirmou ao UOL que, assim como Leda, outras pessoas também não receberam próteses encomendadas por meio do atendimento gratuito na UGF. "Pelo menos três pacientes meus estão na mesma situação", relatou. O valor cobrado, segundo a universitária, estava bem abaixo do mercado.
PREJUÍZO
Não posso comer certas coisas porque não tenho dentes. Às vezes eu tenho vergonha de falar na rua, pois é um constrangimento para mim. É uma situação que me deprime
Leda Ramos, atendida na Clínica Odontológica da UGF"Lá fora, o preço da prótese é muito alto, pode custar entre R$ 1.000 e R$ 1.500. Com R$ 400, a dona Leda comprou o modelo mais caro. Era um serviço fundamental para esses pacientes, já que a maioria procurava a clínica exatamente porque não podia pagar um dentista particular", disse.
"Não era uma dentadura qualquer. Era de porcelana", comentou Leda.
Moradora do bairro de Encantado, também na zona norte, a poucos minutos da Gama Filho, a idosa não trabalha em função de uma doença autoimune que lhe dificulta a locomoção. A casa é mantida pelo marido, segundo ela. "Vou ter que procurar um lugar barato, mas é complicado encontrar aqui pela região. Tenho problema nas pernas e só consigo andar de bengala, com dificuldade. Não vai ser fácil", argumentou.
De acordo com Renata, pelo menos 30 pacientes com dificuldades financeiras eram tratados de forma permanente na clínica universitária --cada um era atendido por uma dupla de estagiários. A cada início de semestre, relatou a estudante, iniciava-se uma triagem para escolher os novos pacientes. A maioria dos casos era solucionada em pouco tempo, mas alguns quadros, como o de Leda, exigiam acompanhamento.
INSTALAÇÕES ERAM NOVAS
Renata afirmou ao UOL que os equipamentos da Clínica de Odontologia do campus Piedade tinham acabado de ser trocados. "Os pacientes atendidos por nós, principalmente os mais pobres, tinham acesso a uma ótima infraestrutura. Eles não vão encontrar isso em qualquer lugar", disse a estudante
"Todos os equipamentos da clínica eram novos. O prédio do setor de radiologia estava perto de ser inaugurado. Tínhamos uma infraestrutura excelente para atender casos prioritários, como pessoas portadoras do vírus HIV, por exemplo, pacientes com problemas renais, diabéticos, entre outros. Havia um setor só para isso, onde as biópsias eram realizadas. Tudo de graça", afirmou a universitária.
A jovem disse ainda que a maioria dos pacientes da Clínica de Odontologia ainda não foi informada sobre o fim do serviço, uma vez que o descredenciamento foi anunciado no decorrer da quarta greve feita pelos funcionários da UGF desde o fim de 2012. "Entramos na greve em dezembro e avisamos os pacientes. Mas para eles, a greve terminaria assim como ocorreu com as outras, e tudo voltaria ao normal. Achávamos que em janeiro tudo estaria resolvido. Muita gente ainda não sabe que a clínica acabou de vez", declarou.
Estudante também teve prejuízo
Renata contou ao UOL ter perdido uma oportunidade de estágio em razão do descredenciamento da Gama Filho. Após cursar o sexto semestre, ela havia passado em terceiro lugar no processo seletivo da ABO (Associação Brasileira de Odontologia) e começaria a trabalhar já no começo de 2014.
No entanto, para dar continuidade ao processo de admissão, a universitária teria que comprovar que estava no sétimo semestre. Como os professores não aplicaram as provas de fim de ano, em 2013, Renata não tem como solicitar o certificado de aprovação.
UNIVERSITÁRIO PODE PERDER OPORTUNIDADE FORA DO PAÍS
O formando de fisioterapia Victor Quartim Nobre, 26, tem uma oportunidade de curso e de trabalho fora do Brasil. No entanto, pode ter seus planos cancelados se não conseguir pegar o diploma na UGF. O rapaz terminaria sua graduação em dezembro do ano passado e não sabe quando conseguirá obter o documento oficial. LEIA A REPORTAGEM
"Eu iria começar no dia 7 de fevereiro. A ABO tem um peso importante para o currículo, era um objetivo profissional que eu teria alcançado. Infelizmente, foi uma oportunidade perdida", lamentou.
Assistência jurídica
RELATOS
Suportaríamos essa quarta greve não fosse o fechamento. Pelo menos uns 50 funcionários acabaram sendo demitidos. Só na minha loja, foram sete pessoas que perderam o seu sustento. São sete famílias desamparadas
Regina Moreira, comerciante, proprietária de uma cafeteria que funcionava dentro do campus da UGFEstou vivendo dia após dia sem saber do amanhã. Hoje eu posso até conseguir o que comer. Daqui a cinco minutos, não sei
Elizabeth Alves da Silva, funcionária e estudante da UniverCidadeO advogado e professor de Direito Gilberto Jorge Ferreira de Freitas, ex-coordenador do NPA (Núcleo de Prática Jurídica) da Gama Filho --serviço cujo objetivo era prestar assistência jurídica gratuita-- informou que o descredenciamento também afetou um "volume incontável" de processos que envolviam diretamente o auxílio jurídico oferecido pelo núcleo.
"Pode acontecer de eu mesmo ainda ter o meu nome colocado em alguma procuração ou envolvido em algum processo, mas eu já não tenho mais qualquer controle sobre isso. Não tenho a menor ideia de como fazer esse levantamento", disse.
Freitas afirmou que o NPA já não atendia mais a comunidade desde 2009, quando uma decisão administrativa limitou os trabalhos do grupo a troca de experiências em sala de aula. "Essa prática passou a ser feita na própria universidade. Os professores orientadores não tinham mais acesso aos processos. No máximo, os alunos aprendiam a elaborar uma petição, embora de forma muito pálida", explicou.
No entanto, pelo menos 50 processos, segundo estimativa do professor, ainda contavam com a assistência dos advogados que atuavam no serviço social da Gama Filho. "Alguns professores orientadores têm tentado fazer esse contato com aqueles clientes para avisá-los. Eles estão preocupados em fazer essa notificação, até porque o artigo 44 do Código de Processo Civil diz que o advogado pode renunciar a outorga recebida, desde que avise o cliente no prazo de dez dias", finalizou.
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