No último ano de enfermagem, estudante vive nas ruas de SP e busca emprego
O estudante Alderico Ferreira de Jesus, 57 anos, cola grau em enfermagem no próximo dia 28. Baiano de Salvador, ele tem uma história que facilmente poderia se encaixar na de tantos migrantes nordestinos que tentaram a sorte em São Paulo. Chegou em 1985 à cidade, onde já trabalhou como metalúrgico, padeiro e servente de pedreiro. Concluiu o ensino médio na capital paulista, tentou passar em vestibulares de universidades públicas – o sonho era a USP (Universidade de São Paulo) --, mas não conseguiu.
Entre estudos e trabalho, Alderico conseguiu uma vaga em universidade privada graças ao Fies (Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior). Mas acabou demitido no final do curso e, sem condições de pagar o aluguel, foi despejado da pequena casa onde vivia em São Miguel Paulista, no extremo leste paulistano, há cinco meses. Desde então, ele passou a recorrer a albergues e casas de apoio.
Na semana passada, a história dele foi postada no Facebook, como um pedido de ajuda – ajuda na forma de emprego, não de dinheiro – pelo padre Júlio Lancelotti, antigo militante na área de direitos humanos em São Paulo. Com uma foto e um “SOS emprego”, o religioso foi direto nas palavras: “O Alderico, de 57 anos, está no último ano de enfermagem e em situação de rua. Necessita trabalhar para ter autonomia e exercer sua profissão.”
“Ele precisa trabalhar para juntar dinheiro e pagar a inscrição no Coren [Conselho Regional de Enfermagem] quando se formar – só então poderá exercer a profissão. Dentro desse sistema em que vivemos, gente como ele é tratada como um nada, ainda que tenha qualificação. Precisamos dar a eles uma resposta mais humana e praticar a compaixão, ainda mais a uma pessoa que se dispôs a cuidar do outro”, declarou Lancelotti ao UOL.
“Não quero ficar parado, quero chegar mais longe. Quero ter a minha vida, livre, e pelo meu esforço”, diz o estudante.
Leia, abaixo, o depoimento de Alderico à reportagem.
*
Cheguei em São Paulo em 1985 para trabalhar. Fiz um pouco de tudo: fui metalúrgico, padeiro, servente de pedreiro. Eu tinha até a 5ª série na Bahia; acabei de estudar aqui, sempre em escola pública, e prestei vários vestibulares para tentar entrar na USP. Mas nunca tive uma nota legal o suficiente. Da última vez, tentei biologia.
Entrei na Uniesp para cursar enfermagem há cinco anos. A colação de grau é dia 28 deste mês. Consegui estudar lá graças ao Fies, eu e vários alunos da minha sala. Sei que, uns anos depois de formado e trabalhando, vou ter que pagar o curso – tenho esperança de que as coisas até lá melhorem.
Eu trabalhava como agente de rua [no acolhimento, com encaminhamento para serviços públicos, de pessoas em situação de rua] na Bompar [entidade filantrópica que tem parceria com a Pastoral do Menor, da Igreja Católica, e convênios com a Prefeitura]. Depois de sete anos, fui demitido. Levei até onde dava, com o dinheiro do acerto, procurei outros empregos, mas não consegui me recolocar – até que o dinheiro acabou e não consegui mais pagar o aluguel de casa. Fiquei duro, teve dias em que nem dinheiro para me alimentar eu tinha. Depois de cinco meses sem pagar, fui despejado.
Hoje eu estou desempregado. Fiquei um tempo na casa de amigos, tentei morar com uma irmã que vive em Guaianases (também na zona leste), mas, sem conseguir emprego, ficou difícil eu continuar lá. Isso é complicado, moça.
Estou em um equipamento social, um albergue, onde durmo, e de onde, de manhã, saio para procurar emprego. Quero um trabalho, seja ele qual for. Trabalhando eu me arranjo em algum lugar para morar, pago meu Coren [que custa pouco mais de R$ 260] e fico apto a exercer a enfermagem.
Recebo atualmente pouco mais de R$ 80 do [ programa federal] Bolsa Família, mas só pela colação de grau, por exemplo, vou ter que pagar R$ 48. É um valor que me ajuda minimamente, mas não me resolve a vida, claro. Eu tenho convicção de que as pessoas devem vencer por seus próprios méritos, e, quanto menos dependerem do Estado, melhor. Mas como a gente faz quando procura emprego, já com uma determinada idade, e percebe que as pessoas empurram serviços menores ou nem consideram você para a vaga assim que se diz: ‘tenho 57 anos’? Tem coisa que não precisa nem falar, bastam as atitudes. Basta eu falar minha idade para ouvir, sempre, o ‘ok, qualquer coisa a gente faz contato com você’. Só que esse contato nunca vem. Isso é o que mais me deprime. Eu quero viver, sabe?
Somos remanejáveis, somos seres humanos. Para estudar nesse tempo em que fiquei sem casa, por exemplo, fui para bibliotecas, estudei em albergues, aproveitei o tempo na universidade para estudar nas dependências dela. Nunca coloquei obstáculos na minha vida, nunca fui de ficar me lamentando ou me escorando nos outros. Já catei papelão na rua para vender e ter ao menos o dinheiro para comer no Bom Prato [restaurante popular onde o custo da refeição é de R$ 1]. Porque sempre tive vergonha de pedir na rua, tendo saúde para trabalhar.
Meu sonho é exercer a enfermagem, cuidar de crianças, de idosos. E fazer uma pós-graduação – quero chegar mais longe. Eu quero viver. Isso, para mim, é viver.
*
O telefone de contato para os interessados em ajudar o estudante “com oferta de emprego, não de dinheiro” (ele salienta), é o da Paróquia São Miguel Arcanjo, na Mooca, o (11) 2692-6798. É a equipe da secretaria do local, onde fica o padre Julio Lancelotti, que tem ajudado Alderico a encaminhar o currículo para serviços de vagas online.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.