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Menina de 11 anos transforma "puxadinho" em biblioteca no interior de SP

Divulgação/Arquivo pessoal
Imagem: Divulgação/Arquivo pessoal

Janaina Garcia

Colaboração para o UOL, em São Paulo

26/11/2015 05h00

Ela tem 11 anos, está na quinta série do ensino fundamental, gosta de ler e de brincar. Sonha em escrever um livro de ficção, algo entre o suspense e o terror, e é a filha caçula e mais estudiosa (garante o pai) de três irmãos.

Engana-se quem pensa que, por essas características, a estudante Kaciane Caroline Marques seja uma pré-adolescente como qualquer outra de sua idade. Desde os sete anos, ela contabiliza a leitura de 519 livros infanto-juvenis, uma média de praticamente 130 por ano – em um País onde raramente a média de leitura ultrapassa os cinco livros por leitor.

Nos últimos meses, a constatação foi reforçada com números mais robustos: a garota inaugurou uma biblioteca com mais de 4 mil títulos, todos, fruto de doações.

A estrutura fica nos fundos da casa localizada no bairro Lealdade e Amizade, na periferia de São José do Rio Preto (interior de São Paulo), e na qual a estudante vive com os pais, um casal de irmãos e a avó.

Com funcionamento das 14 às 17 horas, fora do turno escolar de Kaciane, a biblioteca atende crianças e adolescentes das imediações e de outras localidades e tem a cozinha da família como passagem obrigatória.

Em entrevista ao UOL, Kaciane contou que o incentivo de uma professora, no segundo ano, foi o que a motivou a incluir a leitura no cardápio principal do dia a dia. Morando em uma casa alugada e pequena, porém, era difícil materializar qualquer ideia, mínima que fosse, de uma biblioteca comunitária. Isso só começou a ganhar corpo ano passado, após finalmente a família se mudar para a casa própria.

“Quando eu mudei, via muitas crianças na rua, brincando ou não, e então veio ainda mais forte essa vontade de criar uma biblioteca. Um jornal me entrevistou sobre isso, e muitas doações de livros começaram a vir, assim como material para construir o espaço – hoje são mais de 4 mil livros e mais ou menos 300 pessoas não só do meu bairro que vêm emprestar”, contou.

Escolada nas entrevistas – “umas 20, sem contar esta”, estimou –, Kaciane tem na ponta da língua a resposta à sensação de levar adiante um gosto até então dela: “Fico muito feliz porque sei que estou incentivando a leitura, e isso, com certeza, muda a vida da gente”, garantiu, ela própria que virou uma espécie de celebridade local. Além de participar de programas de TV (de apelo mais ou menos popular), palestras e sessões de contação de histórias no Sesc da cidade. Esta semana a estudante foi homenageada pela União Brasileira de Escritores (UBE) com a medalha Mário de Andrade, concedida a quem contribui com a educação e o ensino no Brasil.

Nas redes sociais, ainda administra, com ajuda dos pais, três páginas no Facebook: uma fan page com 9.804 mil seguidores e dois perfis pessoais que somam, juntos, quase 6 mil “amigos”. “Algumas pessoas eu nem conheço, mas sei que chegaram até mim pela ideia de levar a leitura adiante. Só por isso já vale a pena”, definiu.

E como vale: além do material para o puxadinho-biblioteca e dos livros, a notoriedade da iniciativa garantiu à pequena uma bolsa de estudos em colégio particular, a partir de 2016, válida por sete anos. Até então, só havia estudado em escola pública.

Filha sorteia bolos a quem mais leu no mês, diz o pai

Por enquanto, o sistema de empréstimos na biblioteca é mesmo o mais caseiro possível, com registro à mão, em um caderno, de cada retirada e retorno. O pai, o autônomo Silvio Cesar Marques, 44, contou que uma simpatizante da filha providencia para o ano que vem, também por doação, um computador com sistema de catalogação desses livros.

“A família toda sente muito orgulho da Kaciane. Sabemos que ela pode ajudar outras pessoas a saírem de situações complicadas de vida pelo interesse na leitura, e eu mesmo, que só lia jornal, volta e meia me pego folheando os livros da biblioteca”, disse. “Uma senhora nos doa bolos para que, todo mês, a Kaciane os sorteie entre aqueles que mais leram – e ela pergunta mesmo se a pessoa leu, quer saber a história... isso está plantando uma semente para muitos, eu tenho certeza”, definiu. Até para os outros dois filhos, de 16 e 14 anos? “Eles ainda não gostam tanto assim de ler, mas espero que isso mude”, avaliou o pai.

Indagada se tem uma meta de livros a ser alcançada, Kaciane admitiu: “Quantos couberem na biblioteca”. No curto prazo, porém, o sonho de ser escritora deve virar outra página importante: ela quer lançar ano que vem seu próprio livro, algo entre “o terror e o mistério, mas ficção, claro”, novamente com apoio de doações.

Se ela tem uma dica para quem hesita em trocar a internet – sobretudo, as redes sociais – por um livro? “Leitura não é algo chato ou mais maçante que internet; as pessoas precisam é começar a ler pelo gênero de que mais gostem e com um número de páginas que as estimule a ler, porque depois disso, vão aumentando. E não vão se arrepender”, aconselhou.

Financiamento coletivo

As contribuições em dinheiro para aquisição de mais livros e equipamentos para a biblioteca são captadas através da plataforma Kickante – com valores que variam entre R$ 20 e R$ 600. Até esta quarta-feira (25), haviam sido arrecadados pouco mais de R$ 3 mil.