Vamos dizer com todas as letras: precisamos erradicar o analfabetismo
Imagine estar em meio a uma tarefa e, de repente, sofrer uma cegueira branca permanente. Nesse cenário, é preciso descobrir uma nova linguagem, tatear o mundo que é o mesmo de sempre, mas, ao mesmo tempo, inteiramente novo. Essa é a situação dos personagens do filme Ensaio sobre a cegueira (Fernando Meirelles, 2008), baseado no livro de mesmo nome do escritor português José Saramago. O exemplo é extremo, mas dá a dimensão do desafio de se ver diante de uma linguagem da qual se sabe muito pouco. Os homens e mulheres desse mundo acometidos pelo embranquecimento das vistas precisam achar novas maneiras de se comportar e estabelecer sentidos, já que estão inseguros, à mercê do inesperado. Parece só ficção, não? Mas situação semelhante ocorre com aqueles cujo direito à alfabetização ainda não se concretizou.
Imagine quantas não são as ansiedades e as vulnerabilidades das pessoas que não têm as ferramentas para se movimentar com folga pelo universo da cultura escrita? É um quadro de marginalização social e cultural. Hoje, no Dia Nacional da Alfabetização, escrevo este texto sabendo que três em cada dez brasileiros não podem ler nem compreender estas palavras. Na verdade, segundo os dados do Indicador Nacional do Alfabetismo Funcional (INAF), mesmo entre os outros sete que sobram, três não terão como realmente entender este artigo e tirar informações dele. Realizada pelo Instituto Paulo Montenegro e pela Ação Educativa, com a coordenação de Ana Lucia Lima, da organização Conhecimento Social, a pesquisa está dizendo com todas as letras que uma parcela de nossa população terá a sua participação na vida social, política e econômica bastante reduzida, para não dizer interditada.
O que assusta ainda mais é saber que entre nossas crianças, mesmo com muito mais oportunidades de estudo, a situação não é das melhores: 54,7% não têm desempenho adequado em português no 5º ano do Ensino Fundamental, índice que atinge 33,9% no 9° ano da mesma etapa e 27,5% no Ensino Médio.
Muitos de nós ficamos indiferentes a essa situação, simplesmente porque sequer sabemos o que está em jogo e o que é, de fato, ler, escrever e numerar. Tudo bem, muitos de nós não somos nem pedagogos nem linguistas nem comunicólogos, especialistas que vivem da reflexão sobre a palavra. Mas diante de tão profunda crise de aprendizagem, precisamos nos esforçar e olhar para esse quadro com a urgência que ele demanda.
Alfabetização não se trata, de maneira nenhuma, apenas de dominar um código. Dominar um código é, com certeza, parte da alfabetização, mas está muito distante de dar conta das habilidades centrais que serão o alicerce para exercer qualquer atividade no mundo. Alfabetização não é apenas ler, engloba também escrever e numerar.
Realizar todo esses processos com proficiência significa fazer um monte de coisas complexas: antecipar; inferir; acionar repertório prévio e armazenar novos; estimar quantidades; fazer conexões entre informações aparentemente desconexas; tomar decisões; encaixar as coisas em um contexto maior; verificar se a peça está bem colocada. Não é um processo estático ou mecânico;, pelo contrário, vai ficando melhor a medida que se aprende mais.
Julgar, tomar decisões, categorizar e estabelecer pontes não são aspectos apenas do universo da alfabetização - são elementos fundamentais da vida humana. Por isso, ser plenamente autônomo/a, líder de si mesmo ou pensar por conta própria, exige estar plenamente alfabetizado.
Sem autonomia não há criatividade nem progresso. Dito de outro modo, estamos dando um tiro no próprio pé quando permitimos que nossas crianças, jovens, adultos e idosos permaneçam analfabetos funcionais. Estamos dizendo que não há problemas se eles leem pela metade, ficam confusos e são enganados; que não há nenhum equívoco se eles não descobrirem uma vocação em uma carreira científica, se engrossarem a fila do desemprego ou se produzirem pouco e mal. Estamos dizendo: tudo bem se o País não for para frente.
O Brasil precisa crescer mas se, e somente se, o desenvolvimento de todas as pessoas que dão sentido à nação vier atrelado a esse crescimento. É impossível que sejamos destaque no mundo, com desenvolvimento sustentável e criativo, enquanto as pessoas não são dominam e compreendem a própria língua.
E já que é o Dia Nacional da Alfabetização, nada mais justo que fechar esta reflexão lembrando dos estudos de Paulo Freire, o filósofo, pedagogo e educador brasileiro mais citado no mundo, que preferiu os bancos da escola à carreira em Direito. Certa vez, ele usou um termo curioso para designar a leitura: “palavramundo” – com isso ele queria dizer que se relacionar com os textos exige que a gente se relacione com o mundo (citado em “A importância do ato de ler”, 1988). Com isso, Freire sustentou uma de suas ideias mais revolucionárias: é preciso ser alfabetizado com qualidade e crítica, nada mais, nada menos do que isso. Em tempos de fake news, em que palavras e frases citadas fora de contexto, quando não são inventadas literalmente, saltam de nossas telas, nenhuma reivindicação parece mais adequada.
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